“A JUSTIÇA É CEGA MAIS NÃO É TOLA!!!!” já entrou para a história. Um ministro do STF cometendo vários erros grosseiros de português (não apenas nesta frase) em uma decisão judicial revela mais do que parece. Fica ainda mais vergonhoso quando se sabe que o mesmo ministro é finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico. E, quando lembramos que o mundo inteiro vem acompanhando suas decisões, aí o constrangimento passa também a ser nosso.
Não deixa de ser sintomático. Alexandre de Moraes não anda bem. Nada bem. E aqui me refiro a não estar bem na perspectiva do próprio ministro, que se crê um herói da democracia cumprindo uma missão que faria a história lhe ser devedora. Essa autoimagem parece estar sendo estilhaçada por fatos que vão se impondo, como a intervenção dos EUA, cujo poder suplanta imensamente o seu. Moraes está se vendo na situação em que tem colocado seus perseguidos. Além disso, começa a temer o abandono, ainda que parcial, de quem até aqui o apoiava incondicionalmente, tanto dentro do STF, como na imprensa.
Uma analogia me tem sido tentadora sobre os próximos capítulos de Alexandre de Moraes com o destino do coronel Camisão, retratado no clássico A Retirada da Laguna, de Visconde de Taunay. O livro narra, dentre outras coisas, como o coronel, a mando do império brasileiro, conduziu cerca de 1.680 homens através do Mato Grosso até a fazenda Laguna, no norte paraguaio, durante a chamada Guerra do Paraguai, em 1867. Esta campanha ocorreu em resposta à invasão paraguaia no Mato Grosso.
Moraes se autoimpôs uma missão de “salvar a democracia brasileira” mesmo que, no percurso, a esteja destruindo
Como o título antecipa, a campanha militar não deu certo e, de Laguna, tiveram de recuar, retornando com apenas 700 soldados. O coronel assumiu as tropas no meio da missão, quando a sua inviabilidade já era mais do que verossímil, mas as ordens eram para continuar. Embora Taunay descreva com tintas estoicas o coronel e a sobrevivência dos soldados como heroísmo fruto da virtude da resiliência, a narrativa deixa ver que muitos não teriam morrido se a realidade da impossibilidade da continuidade tivesse sido admitida mais cedo por Camisão, algo que ficou claro muito antes de ser obrigado a bater em retirada.
Camisão insistiu mesmo quando seus soldados definhavam de cólera e muitos já tinham desertado. Taunay o descreve focado no cumprimento da missão enquanto perdia o próprio exército. Recusava-se a adaptar os planos às circunstâncias reais. Interpretava os reveses como obstáculos temporários, não como sinais de inviabilidade. Até a realidade se impor e ele ter de bater em retirada, inclusive deixando doentes pelo caminho. Apesar de seus méritos e qualidades, que o tornaram um herói da pátria, sua obstinação custou vidas.
Obstinação semelhante se enxerga com facilidade em Alexandre de Moraes, com a diferença que Camisão tinha mais consciência do que se passava. Moraes se autoimpôs uma missão de “salvar a democracia brasileira” mesmo que, no percurso, a esteja destruindo e tenha de “invadir” outros países, como os Estados Unidos, dando ordens por lá como se juiz de lá fosse.
A consequência mais óbvia, por enquanto, é ter transformado o nosso terreno constitucional em um pantanal intransitável em que ele mesmo se afunda. Agora, tem de dar novas decisões para esclarecer as anteriores, causando ainda mais confusão e revelando, pelo excesso de erros de português e abuso de pontos de exclamação em frases digitadas em caixa alta, alguém que claramente já não consegue pensar direito e com tranquilidade no que faz.
Camisão talvez tenha subestimado os paraguaios, mas Moraes superestima a si mesmo e seu poder. Para Camisão, as piores adversidades eram provas da grandeza da missão. Para Moraes, também; mas, quando a realidade o contradiz, dobra a ofensiva. Taunay descreve como Camisão permanecia em sua tenda planejando movimentos enquanto a expedição se esfacelava ao redor. Há um paralelo perturbador com quem bloqueia redes sociais e censura indiretamente o trabalho da imprensa enquanto o país se vê atolado em uma crise internacional, sem armas suficientes para lutar. Salvo na retórica eleitoral de curto prazo. Isso até pode dar dividendos ao governo petista, mas a derrota nessa guerra nos aguarda ali na esquina. Uma “retirada” será inevitável, ainda que indigna.
O coronel Camisão talvez tenha subestimado os paraguaios, mas Moraes superestima a si mesmo e seu poder
Camisão foi vítima de uma estratégia militar equivocada, mas lutava por um objetivo legítimo: defender o território nacional. Moraes tornou-se arquiteto de uma estratégia jurídica flagrantemente inconstitucional, lutando contra ameaças que ele mesmo define e dimensiona, numa guerra cujas regras ele mesmo estabelece e reescreve conforme a conveniência.
Camisão morreu de febre, delirando, mas ainda dando ordens durante a retirada: “O comandante, no próprio couro em que estava estendido quase agonizante, dava ainda ordens, umas, é certo, incoerentes e inexequíveis, mas outras lúcidas e práticas”, relata Taunay. É uma imagem que fica na memória: o comandante que foi derrotado, perdeu boa parte de seu exército, perdeu a saúde, perdeu a vida, mas jamais perdeu a certeza de que estava cumprindo o destino.
Esta analogia de Camisão com Moraes funciona onde ambos manifestam a síndrome do comandante inflexível, mas falha onde Camisão era um executor leal e Moraes é um criador autônomo de sua própria missão. A questão que fica para a nossa situação atual é se nossas instituições, apesar de Moraes e seus aliados, terão a sabedoria de saber quando parar antes que a cura se torne pior que a doença, antes que a defesa da democracia culmine na sua própria negação.