Caso Oruam, o espelho invertido dos casos do “golpe”

Por Kátia Magalhães - CD

    30/09/2025 17h36 - Atualizado há 2 horas

    Diante do fiasco notório e já tão longevo da nossa segurança pública, a prisão e a subsequente soltura de figura ligada ao universo delitivo poderiam passar quase despercebidas, como meras linhas acrescidas ao extenso noticiário policial de um país subjugado por gangues de todo o gênero. Poderiam, se o assunto em questão não fosse um contraponto perfeito à leva de casos que monopolizam os holofotes desde a restituição de Lula ao Planalto, e se o cotejo entre ambos não escancarasse a perversão de um sistema judiciário cuja venda nos olhos foi trocada pela musculatura de senhores caprichosos.

    No último final de semana, o cantor Oruam foi solto por decisão do ministro Ilan Paciornik, do STJ. Após investigações sobre uma suposta tentativa de homicídio de sua autoria, o rapaz havia sido denunciado pelo MP à 3ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro, e, por ocasião do recebimento da denúncia, a magistrada havia determinado sua prisão preventiva. Em julgamento de habeas corpus(HC) impetrado por Oruam, o TJ/RJ havia mantido a detenção, pois o rol de provas indicava que o rapaz colocava em risco a ordem pública e a própria aplicação da lei penal. Contudo, em canetada monocrática e desidratada, o togado do STJ se recusou a admitir a periculosidade de Oruam e o risco de sua fuga, e o mandou de volta ao lar.

    O cantor, réu em ação penal proposta perante o juízo competente (primeira instância) da comarca onde se desenrolaram os fatos alegados, pôde ingressar com HC, e, em seguida, com recurso ao STJ contra decisão que lhe havia sido desfavorável. Todos os réus do 08.01, assim como o ex-presidente Bolsonaro e outros envolvidos na dita “trama golpista” foram processados e condenados por togados do STF, incompetentes para a apreciação de condutas de pessoas desprovidas de foro privilegiado, em atentado crasso ao princípio do juiz natural. Por terem sido submetidos de chofre à cúpula do judiciário, os “golpistas” foram compulsoriamente atrelados às decisões daquela única corte, e privados, assim, de sua garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição. Nem mesmo eventuais HCs vieram em socorro dos acusados de “golpe”, pois, embora previsto em todas as Constituições (incluindo a nossa) como remédio fundamental à preservação das liberdades, o habeas corpus viu seu alcance ser limitado pela inconstitucional Súmula 606 do STF, tendo sido indisponibilizado contra decisões de membros e órgãos do tribunal.  

    Na inicial da ação criminal (denúncia) contra Oruam, o Ministério Público detalhou os ilícitos imputados ao rapaz, acusando-o de alvejar dois policiais com pedras de até 4,5 kg durante a apreensão de um menor infrator abrigado em sua casa, de atingir viatura policial com outras pedradas, e, em seguida, de se evadir rumo a reduto da facção Comando Vermelho, gerando obstáculos à sua captura. A autoridade acusadora (MP) especificou todos os fatos e as provas que fundamentaram a imputação de homicídio tentado, permitindo a Oruam conhecer cada uma das práticas a ele atribuídas, e, desse modo, exercer seu pleno direito à defesa.

    Já nos processos do 08.01, a PGR deixou de individualizar as condutas imputadas, e ainda privou os advogados doamplo acesso aos autos, impedindo os envolvidos de conhecer as acusações que sobre eles recaíam. Sob a manto do pretenso cometimento de crime multitudinário, motivado pela paixão de um coletivo, o primeiro acusador se recusou a arcar com o ônus da prova de suas alegações, e deixou seus denunciados às cegas, sem saberem como, ou do que se defender.

    Oruam só veio a ter sua prisão preventiva decretada após o oferecimento e o recebimento da denúncia, mediante decisão fundamentada na qual a magistrada elencava todos os indícios de que a liberdade do cantor representava riscos concretos à ordem pública, à segurança de autoridades policiais e ao futuro cumprimento de uma eventual condenação. Tanto a juíza de primeira instância quanto o TJ/RJ conferiram à preventiva o seu devido feitio, qual seja, o de medida excepcional, da qual togados só lancem mão nas hipóteses da chamada “fumaça do cometimento do delito”, em que seja verossímil associar a liberdade do indivíduo à probabilidade da prática delitiva.

    Os casos do 08.01 seguiram “lógica” inversa e perversa, pois os participantes da manifestação na Praça dos 3 Poderes e integrantes dos acampamentos em frente ao quartel-general do exército em Brasília foram recolhidos presos em baciada, independentemente de qualquer justificativa para a privação de suas liberdades. Sem qualquer despacho ou acusação formal, seres humanos permaneceram encarcerados por dias, meses e até anos, em virtude de “certidões” oficiosas confeccionadas pelo TSE sobre suas preferências político-ideológicas, aferidas por postagens na internet, como revelado e provado por Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Alexandre de Moraes. Foi assim com a cabeleireira Débora, trancafiada em presídio apesar de sua prerrogativa à prisão domiciliar para os cuidados da prole; foi assim com várias outras mães de menores, e com idosos debilitados por enfermidades graves.

    Também os réus na farsesca “trama golpista” foram, e ainda são alvos de prisões preventivas aplicadas em total desrespeito aos requisitos do artigo 312 do CPP. Basta pensar em Mauro Cid, que, embora não flagrado em qualquer prática potencialmente nociva à ordem pública, foi deixado na masmorra até a celebração de uma delação pouco ou nada espontânea. Recordemos ainda Filipe Martins, preso por uma viagem sequer realizada, e por seis meses largado às traças no sentido mais literal da expressão, até sua conversão em “solto-preso”, sujeito às restrições ilegais de Moraes. Impossível não mencionar o general Braga Netto, lançado à preventiva em virtude de fofocas sobre pretensos fatos pretéritos, e que, a despeito da falta de relevância e contemporaneidade dos fundamentos trazidos em seu decreto prisional, mofa no cárcere até hoje.

    Destoando dos casos acima, o ministro Paciornik, do STJ, acaba de tirar Oruam da cadeia, sob a alegação de que os fundamentos para a manutenção de sua preventiva teriam sido “insuficientes”, pois o Ministério Público não teria demonstrado qualquer grau de periculosidade concreta do rapaz. Na visão do togado, a concessão de esconderijo a menor infrator, as pedradas contra agentes policiais e contra a viatura, e a evasão rumo a localidade dominada por facção criminosa não teriam bastado para justificar o encarceramento preventivo do rapaz. Em que medida Oruam poderia ter se mostrado mais perigoso?

    Coroando seu raciocínio falacioso, o togado ainda invocou precedente da ministra Carmen Lúcia, do STF, para sustentar que o comparecimento espontâneo de Oruam, em juízo, teria elidido o risco de fuga. Ora, qual foi então a razão para a decretação, pelo próprio Supremo, da prisão domiciliar de Bolsonaro, apesar de seu comparecimento espontâneo à corte?

    Jurisdição é o poder de dizer o direito, dando a cada um o que lhe cabe, na forma das normas vigentes em uma dada coletividade. A soltura de Oruam e as prisões e perseguições aos “golpistas”, longe de configurarem medidas justas, refletem opções ideológicas de autoridades das quais se esperaria reverência à legalidade estrita. No Brasil atual, é possível afirmar, sem laivo de leviandade, que nossa cúpula togada abandonou sua atividade jurisdicional para favorecer uns e prejudicar outros, à margem da Constituição e das leis, e ao sabor exclusivo de seus desejos.


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