O que aconteceria se, ao ser chamado como testemunha num processo penal, você descobrisse, já sentado diante do julgador, que também é investigado? Em uma democracia republicana, esse tipo de episódio geraria escândalo, anulação do ato e responsabilização das autoridades envolvidas. No Brasil do século XXI, vira apenas mais uma nota de jornal.
O delegado da Polícia Federal Caio Rodrigo Pelim compareceu ao Supremo Tribunal Federal como testemunha da defesa do ex-ministro Anderson Torres. Sua convocação era clara: prestar informações sobre a atuação da Polícia Rodoviária Federal nas eleições de 2022. Mas, para surpresa de todos — inclusive dele —, foi informado já durante a audiência de que também era investigado. O Ministério Público, por meio do Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, comunicou a nova condição processual do depoente, e o relator Alexandre de Moraes endossou o aviso, concedendo-lhe o direito ao silêncio e à não autoincriminação. Mas o mal já estava feito.
O devido processo legal não é apenas um rito; é um limite. Um freio à tentação inquisitorial do Estado. Não se trata de mero tecnicismo jurídico, mas de garantia institucional contra a barbárie revestida de legalidade. Nenhum cidadão pode ser tratado como investigado sem prévia ciência formal, ampla possibilidade de defesa e conhecimento exato dos fatos imputados. O artigo 5º, inciso LV, da Constituição é cristalino: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Isso vale para todos — até mesmo para um delegado da PF convocado como testemunha.
A resposta evasiva do ministro-relator apenas agrava a situação. Alexandre de Moraes afirmou que o MP é o titular da ação penal e que o STF não tem ingerência sobre o momento de um eventual indiciamento. Tal afirmativa, embora formalmente correta, escamoteia o ponto central: o problema não é o indiciamento em si, mas a ocultação deliberada do status investigativo daquele que foi chamado a depor sob o compromisso de dizer a verdade. Essa prática compromete o valor do depoimento, gera insegurança jurídica e deslegitima o processo.
Mais grave ainda é o cenário que se delineia: um cidadão chamado como testemunha se vê constrangido entre dizer a verdade, como exige a lei, e o risco de se autoincriminar, por algo que sequer sabia estar sendo objeto de investigação. É o paradoxo do “investigado surpresa”: não é informado para se defender, mas é tratado como suspeito para ser controlado. O Judiciário, ao invés de zelar pela paridade de armas e pela dignidade processual do indivíduo, utiliza sua posição institucional para capturar a verdade que deseja. Trata-se da transfiguração do processo penal em instrumento de poder, não de justiça.
O ministro Alexandre de Moraes tentou justificar o episódio dizendo que “as investigações prosseguem” e que há menções ao delegado em outros depoimentos. Eis a armadilha: por essa lógica, qualquer cidadão que tenha o nome mencionado em uma investigação estaria, desde logo, sujeito a ser surpreendido com sua condição de investigado — sem notificação prévia, sem defesa, sem garantia mínima de conhecimento dos fatos. É o retorno da lógica inquisitória, onde o Estado espreita em silêncio e age em segredo, revelando-se apenas no momento da armadilha.
Essa prática, além de afrontar a Constituição, agride frontalmente o princípio republicano. O poder não pertence a uma casta, nem deve ser exercido de forma sigilosa e assimétrica. O Estado existe para garantir direitos, não para encurralar cidadãos. O STF, ao tolerar — ou pior, ao conduzir — situações como essa, abandona sua função de guardião das liberdades e se converte em promotor do arbítrio.
O episódio revela uma verdade incômoda: no Brasil atual, as formas legais são mantidas como fachada, enquanto a substância das garantias é erodida por dentro. O devido processo vira performance. A presunção de inocência vira ficção. O contraditório vira improviso. E o Judiciário, que deveria ser o escudo da liberdade, se permite ser a espada do poder.
Todo governo ama o poder. A Constituição existe para contê-lo. Quando um tribunal transforma a posição de testemunha em armadilha, já não estamos mais falando de justiça, mas de uma encenação perversa, onde o direito é apenas o figurino do autoritarismo.
Não é irrelevante, tampouco coincidência, que o episódio envolvendo Caio Pelim tenha ocorrido logo após o constrangimento vivido por Alexandre de Moraes no depoimento de Aldo Rebelo. Durante a oitiva, Aldo discordou com firmeza — e educação — das premissas acusatórias sustentadas pelo Ministério Público. Suas respostas contrariavam a narrativa da Procuradoria-Geral da República e expunham fragilidades do inquérito. Incomodado, Moraes o interrompeu de forma abrupta e chegou a ameaçá-lo de prisão por desacato. A cena foi clara: o relator não tolera ser contrariado, mesmo por uma testemunha.
Dias depois, o novo padrão parece traçado — não se espera mais a divergência, antecipa-se a repressão. O tratamento dado a Caio Pelim, surpreendido com o status de investigado no momento do depoimento, sinaliza uma mudança de método: não basta mais cortar a palavra após a fala; agora, silencia-se antes mesmo que a fala comece. No tribunal que se julga acima da crítica, o simples risco de uma resposta inconveniente já justifica a intimidação. A divergência virou ameaça. E a testemunha, inimigo em potencial.
Esse novo arranjo processual, em que o cidadão é constrangido antes de falar e rotulado antes de se defender, lembra mais uma peça de ficção distópica do que um Estado de Direito. Mas não é ficção — é Kafka encarnado em toga. Em O Processo, o personagem Josef K. é tragado por um sistema judicial que o acusa sem dizer por quê, julga sem dar acesso aos autos e executa sem direito de defesa. Não há sentença, apenas um destino selado por engrenagens obscuras que operam à margem da razão. O mesmo se vê aqui: a ignorância forçada vira método, a surpresa substitui a citação, e o processo se converte em punição. A diferença é que, neste Brasil kafkiano, o tribunal existe, tem nome, rosto e microfone. E o absurdo não é literatura — é política institucionalizada.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.