Os “homens ocos” de Alexandre de Moraes: o que mostra a “Vaza Toga 2”

Por Flávio Gordon

    07/08/2025 20h24 - Atualizado há 9 horas

    “Ele não era estúpido. Era superficial. Essa era, de certo modo, sua maior falha: uma incapacidade de pensar.” (Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém)

    “Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um suspiro” – versou T. S. Eliot em Os Homens Ocos. Assim expira a democracia. Não com tanques e alaridos, mas com conversinhas indecorosas e mexericos em grupos privados de WhatsApp.

    Assinada por David Ágape e Eli Vieira, a reportagem investigativa intitulada “Arquivos do 8 de Janeiro: por dentro da força-tarefa judicial secreta para prisões em massa” mostra como os “homens ocos” da Nova República, sem alarde e no escurinho de uma investigação clandestina, destruíram o que restava de democracia no Brasil. Homens ocos? Mal o escrevo e já me arrependo, pois falamos aqui de criaturas prenhes, repletas, estufadas de banalidade do mal. São burocratas introvertidos, ressentidos e vulgares como o juiz auxiliar Airton Vieira; funcionários públicos ávidos por micropoder e estabilidade, capazes de decretar a destruição de vidas inocentes com emojis e risinhos de deboche.

    Com a publicação da reportagem, já apelidada de Vaza Toga 2, restou documentado o que já era evidente: a partir de seus gabinetes no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes comandou um tribunal paralelo, uma espécie de corte secreta operando por WhatsApp, que passou a decidir sobre a liberdade de cidadãos com base em seus antecedentes ideológicos. A prática não é nova na história do mundo. Foi assim na URSS, na China maoísta, na Alemanha Oriental. Os novos sovietes e comissários revolucionários são assessores de toga, burocratas de corte, técnicos e peritos cooptados operando sob o comando de um homem só, na mais completa ausência de controle institucional.

    Junto com seus capangas e aliados políticos, Moraes instituiu um sistema de controle social de base jurídica simulada, que combina censura, vigilância, difamação e punição exemplar

    Essa estrutura clandestina – operada entre o STF e o TSE, com assessoria direta da chefe de gabinete de Moraes, Cristina Yukiko Kusahara – criou, processou e aplicou uma sistemática de triagem político-digital, com vistas a um claro policiamento ideológico. Por meio dela, os cidadãos detidos no 8 e no 9 de janeiro (a maioria dos quais sem ter cometido crime algum) foram classificados com “certidões positivas” ou “negativas”, conforme o conteúdo de suas postagens em redes sociais, comentários sobre ministros, apoio ou crítica ao governo, ou até mesmo simples curtidas em memes. As “certidões” não tinham base legal, não constavam dos autos processuais, não foram compartilhadas com os advogados de defesa – mas determinaram, na prática, quem seria libertado e quem permaneceria preso.

    O resultado foi um escândalo jurídico de proporções históricas. Não há como não ficar enojado ao se tomar conhecimento dos casos particulares. Casos como o de Vildete da Silva Guardia, uma aposentada de 74 anos, presa após procurar abrigo do gás lacrimogêneo durante os distúrbios de 8 de janeiro. Mesmo sem provas de vandalismo, foi condenada a 11 anos e 11 meses de prisão. Sofrendo de hemorragias intestinais, chegou a receber prisão domiciliar. Mas, em julho de 2025, Moraes mandou recolhê-la novamente ao cárcere, por suposta violação de suas condições. A idosa permanece presa, em cadeira de rodas, enquanto militantes de extrema-esquerda que depredaram o Congresso em 2006 ou invadiram o STF em 2014 jamais viram a sombra de um processo criminal.

    Como o de Claudiomiro da Rosa Soares, caminhoneiro, preso não por qualquer ato violento, mas por postar críticas ao Supremo e ironizar a popularidade de Lula. Um dos posts dizia: “Segundo o cabeça de ovo, ninguém pode questionar nada”. A frase, em tom de desabafo cívico, bastou para classificá-lo como “positivo” e mantê-lo na prisão por quase um ano. Jamais entrou nos prédios invadidos, jamais cometeu violência. O critério que o condenou foi inteiramente ideológico.

    Como o de Ademir da Silva, rotulado como ameaça porque compartilhou no Instagram a frase “fazer valer a Constituição não é golpe”. Foi o suficiente para que sua liberdade fosse negada. Nenhum outro conteúdo foi encontrado. Nenhum ato de vandalismo foi imputado.

    Como o de Adenilson de Cordova, mantido sob prisão domiciliar com tornozeleira por mais de um ano. O motivo? Ter compartilhado um link para a petição “Em Defesa da Liberdade”, criada meses antes das eleições por um grupo de advogados. O perfil que divulgou a petição tinha zero seguidores. Mas a certidão foi emitida, a prisão foi mantida, a presunção de inocência foi ignorada.

    E o de Ademir Domingos da Silva, vendedor ambulante, detido não por participar dos atos de 8 de janeiro, mas por estar no acampamento no dia seguinte, onde vendia bandeiras, camisetas e capas de celular. Os “indícios” contra ele eram cinco tweets antigos, de 2018, criticando o PT. Nenhuma referência ao evento de Brasília, nenhuma incitação à violência, nenhuma infração concreta. Mesmo assim, foi condenado, submetido a uso de tornozeleira eletrônica e obrigado a frequentar um “curso sobre democracia”, ministrado justo pelos mandantes dessas prisões políticas em série.

    O conjunto dessas situações não representa apenas a falência do devido processo legal. Representa a institucionalização do arbítrio. Moraes centralizou em si as decisões sobre custódia, ignorando as recomendações da Procuradoria-Geral da República e afastando a autoridade dos juízes de primeira instância. Às audiências de custódia foi reservado o papel de encenação processual. A decisão sobre quem seria libertado já estava tomada, inteiramente baseada na triagem digital secreta conduzida por seus assessores.

    Como bem compreendeu Hannah Arendt, o mal não exige monstros. Basta a diligência medíocre de funcionários obedientes, prontos a rotular, classificar e punir

    A chefia da operação coube a Cristina Kusahara, que, segundo fontes internas, ditava ordens a juízes e técnicos do TSE, embora não ocupasse cargo oficial no tribunal. Foi ela quem ordenou que se examinassem postagens nas redes sociais antes de libertar qualquer detido. Foi ela quem exigiu volume, e não rigor, nas análises. Foi ela quem tratou os funcionários como se fossem soldados de um gabinete de guerra – e não servidores públicos num Estado de Direito. Assim como os agentes de repressão stalinistas, ela exigia cotas e mais cotas de “certidões”.

    A esse tribunal paralelo se somaram colaboradores externos: ativistas, universidades e agências de checagem, recrutados informalmente para espionar grupos privados de WhatsApp e Telegram. Parte das instruções era enviada diretamente ao e-mail pessoal de Moraes, para fugir ao controle institucional. Tudo isso para perseguir “desinformação” e “golpismo” em cidadãos cuja única infração havia sido expressar, com linguagem comum e indignação justa, o descontentamento com as instituições.

    A construção desse aparato de repressão revela mais do que um mero “excesso”, pois a diferença entre um Estado de Direito e um regime de exceção não é de grau, mas de natureza. Junto com seus capangas e aliados políticos, Moraes instituiu um sistema de controle social de base jurídica simulada, que combina censura, vigilância, difamação e punição exemplar. O Judiciário se converteu, nesse modelo, em instrumento disciplinador da opinião pública, a serviço da hegemonia político-ideológica.

    Sim, sob os aplausos dos sicofantas e o silêncio dos cúmplices, Moraes transformou o STF em um instrumento de engenharia político-comportamental. A linguagem do tribunal, antes voltada à proteção das liberdades, serve agora para racionalizar a opressão. A Constituição, antes escudo do cidadão, foi convertida em arma seletiva do poder. Está em curso, no Brasil, um processo de destruição metódica das garantias do Estado de Direito, conduzido desde dentro das instituições e com métodos vis. Eis uma conclusão que dispensa todo exame de intenções, pois os fatos são incontroversos.

    No fim das contas, o que a Vaza Toga 2 escancara não é apenas a perversão de garantias jurídicas fundamentais. É algo mais profundo, mais tenebroso, mais difícil de remediar: a naturalização do arbítrio em nome de um suposto bem maior. O tribunal paralelo de Alexandre de Moraes não nasceu do caos. Ele nasceu da rotina. Da covardia institucionalizada, do silêncio cúmplice de juristas domesticados, da rendição moral da imprensa e da passividade resignada dos que se acostumaram a chamar censura de “regulação”, prisão política de “prevenção” e perseguição ideológica de “defesa da democracia”.

    Como bem compreendeu Hannah Arendt ao descrever a fisionomia banal de Eichmann, o mal não exige monstros. Basta a diligência medíocre de funcionários obedientes, prontos a rotular, classificar e punir – sem jamais se perguntarem o que, afinal, estão fazendo. Resta que, mais cedo ou mais tarde, a História costuma ser severa com os que se ajoelham diante de tiranos travestidos de benfeitores. A questão é saber se, num futuro que se espera próximo, a sociedade brasileira terá estômago para encarar a própria covardia e coragem para reparar a infâmia.


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