Na manhã do julgamento, ao despertar de sonhos intranquilos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro, Mauro Cid, o homem que vendia algodão-doce no meio do golpe e a cabeleireira Débora Rodrigues (que insista em querer fazer permanente no único fio de cabelo da calva suprema), Alexandre de Moraes encontrou-se em sua cama metamorfoseado num ser humano.
Estava deitado de costas e, quando levantou a cabeça, teve um pensamento humano (“e se eu estiver errado?”) e outro (“e se acreditei na mentira de que poderia me tornar como Deus?”) e outro (“por que estou causando tanto sofrimento?”), seguidos por uma pontada que ele não conseguia localizar direito, porque o que lhe doía era a até então desconhecida consciência. Tateando o peito, Alexandre de Moraes também sentiu pulsar o coração. O tuntitunti o tornou imediatamente mortal e frágil.
“Acaba com aquele fascista, amor!”
“O que terá acontecido comigo?”, pensou ele. Não era um sonho. Assustado, Alexandre de Moraes achou melhor não falar nada para ninguém. Mas quando sua esposa se despediu dele dizendo “Vai lá e acaba com aquele fascista, amor!”, ele contraiu os músculos da face numa expressão que era pura melancolia. Ela achou estranho e mais tarde comentou com o filho, aquele do aeroporto de Roma: “Seu pai está estranho hoje”.
A caminho do STF, Alexandre de Moraes folheava o voto pré-condenatório que ele preparou com tanto esmero para o primeiro ato da farsa. As palavras faziam aquele órgão novo que batia furiosamente no peito murchar e murchar e murchar, a ponto de lhe faltar ar nos pulmões. “Acho que vou morrer. Pior, vou pro inferno”, pensou ele assim que viu o gráfico que seus assessores fizeram com tanto cuidado e no qual Alexandre de Moraes argumentava que tinha prendido apenas sete idosos com mais de 70 anos. Apenas.
“É assim que eles me veem”
Foi longo o trajeto até o STF. “Hoje é dia de acabar com o Bolsonaro, hein, chefe?”, perguntou o motorista, puxando assunto. Mas Alexandre de Moraes não disse nada porque não havia o que dizer. Ele ainda estava tentando se acostumar à sua nova natureza, uma natureza que agia com base na prudência e na Constituição, e que não estava imune ao amor e ao perdão. Com medo do silêncio do chefe, o motorista achou melhor não falar mais nada.
Uma vez em seu gabinete, Alexandre de Moraes avisou que não estava muito bem e que por isso não queria ser incomodado. A secretária, acostumada à arrogância que parece contaminar todos os que vestem a toga negra e mágica, achou estranho o “por favor” que se seguiu à ordem. “Está tudo bem com o senhor, excelência?”, perguntou ela, ajoelhando-se diante da autoridade. Alexandre de Moraes, porém, a ajudou a se levantar. “É assim que eles me veem. É assim que eles me temem”, pensou ele, trancando-se na sala e a muito custo contendo as lágrimas.
“Só um monstro psicopata...”
Cercado pelo produto da sua injustiça, Alexandre de Moraes pegou a esmo um dos muitos processos empilhados sobre sua mesa. E, pela primeira vez, sentiu aquilo que chamamos de compaixão e arrependimento. “Só um monstro psicopata é capaz de condenar uma pessoa a 17 anos de prisão por causa disso”, pensou. E pensou também que a democracia não pode ser um fim em si mesmo que justifique tanta crueldade. Pensou ainda que não cabia a ele usar a força para impor sua vontade.
Naqueles minutos, enquanto abria o computador para escrever alvarás de soltura e decisões de arquivamento de todos esses casos baseados em fantasias e paranoias de tirano, Alexandre de Moraes pensou muitas coisas óbvias, dessas que a gente vem expondo há tempos aqui na Gazeta do Povo, mas que até então não haviam lhe ocorrido. Até que bateram à sua porta.
“Só farta ocê”
“Pode entrar”, disse. A porta se abriu e, ao levantar a cabeça, Alexandre de Moraes encontrou a figura da ministra Cármen Lúcia, toda paramentada com a toga que lhe dava o poder excepcional sobre as palavras, as ideias, a liberdade e... a vida daquelas sub-pessoas. Ou, como diria o antigo Alexandre de Moraes, aquele de poucas horas atrás, dos golpistas, fascistas, negacionistas, extremistas,... “O qué ocê tá fazendo aí, hómi? O trem já vai começá. Tá tudin pronto. Só farta ocê”, disse ela.
Alexandre de Moraes não respondeu nada. Só ficou olhando para a colega. Como num romance daqueles bem piegas, mas também muito humanos, demasiadamente humanos até, os olhos dele se encheram de lágrimas. Foi aí que Cármen Lúcia percebeu que não estava diante de Alexandre de Moraes, o ministro do STF, e sim de Alexandre de Moraes, pela primeira vez um ser humano. Com alguma dificuldade, ela conteve o nojo e disse: “Seja implacável. Impiedoso. A democracia depende de você”. E fechou a porta.
Insuportável e inegavelmente humanos
Tremendo e sentindo um formigamento tomar conta de todo o seu corpo e alma humanos, insuportável e inegavelmente humanos, Alexandre de Moraes, disposto a desfazer o mal que tinha causado às pessoas (independentemente de concordar ou gostar delas) e ao país, e por mais que isso lhe custasse o poder hoje absoluto e talvez até a própria liberdade, se levantou, fez o sinal da cruz e, como que embriagado por um desejo genuíno de fazer justiça, ou melhor, Justiça, e não movido pelo prazer sádico da vingança, saiu.