Duas coisas eram esperadas no julgamento pelo STF do recebimento da denúncia contra Bolsonaro pela suposta trama golpista: a primeira é que os cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que compõem a Primeira Turma receberiam a denúncia de forma unânime — como de fato ocorreu. A segunda é que o ministro Alexandre de Moraes não perderia a oportunidade, tampouco os holofotes, para perder completamente o controle, se defender, responder a seus críticos e reforçar as narrativas dele próprio e do Supremo.
Por isso, o recebimento da denúncia não surpreendeu. O STF já deixou claro que Bolsonaro está previamente condenado — como os ministros admitem para a imprensa, em off, dia sim e outro também. O recebimento da denúncia, portanto, é apenas uma das etapas que os ministros precisam riscar do checklist até chegar à condenação, num julgamento relâmpago. É um verdadeiro espanto: o mesmo tribunal que demorou mais de sete anos para julgar o Mensalão encerrará um caso de proporções semelhantes em cerca de oito meses. É coisa para o Guinness Book, o livro dos recordes.
Já em relação ao segundo ponto, a surpresa foi que Moraes entregou uma performance ainda melhor do que poderíamos imaginar. Que ele se descompensaria durante o julgamento era muito provável — mas que entregaria uma atuação digna de Oscar foi, de fato, surpreendente. Já na análise das preliminares, na terça-feira (25), Moraes não resistiu: ao tratar da competência do Supremo para julgar o caso, desviou completamente do tema e passou a comentar algo sem qualquer relação com o processo — pediu licença para “desmentir uma narrativa”.
E que narrativa seria essa? A de que o STF estaria condenando "velhinhas com a Bíblia na mão" que teriam saído para um passeio de verão em 8 de janeiro de 2023. Em qualquer democracia respeitável, essa fala deveria causar repúdio imediato. Como juiz e relator do caso, não cabe a Moraes “desmentir narrativas” — isso é papel de políticos, da imprensa e da Procuradoria-Geral da República (PGR). Assistir a um juiz fazer isso em pleno julgamento é como ver um jogador de futebol realizar uma cirurgia cardíaca: simplesmente não faz o menor sentido. Ao mesmo tempo, isso diz muito sobre o viés político do julgamento e, sobretudo, o desejo de controlar a narrativa.
O mesmo tribunal que demorou mais de sete anos para julgar o Mensalão encerrará um caso de proporções semelhantes em cerca de oito meses
Ao tentar “desmentir a narrativa”, o ministro se complicou: seus dados mostram que o Supremo condenou pelo menos 43 pessoas idosas. Cerca de 32% dos condenados são mulheres. Que tipo de golpe, em qualquer parte do mundo, é tentado por uma massa composta por idosos e mulheres sem treinamento militar ou de combate? Só mesmo o golpe de Pindorama. Mas não parou por aí: na mesma terça-feira, Moraes rejeitou uma preliminar das defesas que alegavam não ter tido acesso integral às provas dos autos. Já na quarta-feira, um dia depois, o ministro tirou da cartola, em pleno julgamento, um vídeo que não constava dos autos e não era de conhecimento das defesas.
Ironia suprema: menos de 24 horas após afirmar que não havia escondido nenhuma prova, Moraes apresenta uma prova escondida, surpreendendo as defesas — que, vale lembrar, têm o direito de não serem surpreendidas. Moraes rebateu os advogados dizendo que o vídeo retrata “fatos públicos e notórios” e, portanto, o vídeo não seria uma prova. Mas não é bem assim, por duas razões: primeiro, se é público e notório, não precisaria ser mostrado; segundo, o gabinete do ministro selecionou imagens e trechos de vídeos, montando uma sequência com lógica própria que apresenta uma narrativa ou tese desfavorável aos acusados. E pior: utilizou o vídeo surpresa contra os acusados no julgamento, para fundamentar sua decisão de receber a denúncia contra todos eles.
Nesse contexto, Moraes está absolutamente equivocado: o vídeo é, para todos os efeitos, uma prova — e deveria ter sido apresentado pela PGR, não pelo juiz relator. E mais: trata-se de uma prova enviesada, já que Moraes selecionou apenas as imagens que lhe interessavam e ignorou as que não lhe serviam. Não incluiu, por exemplo, a imagem do general G. Dias — então ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Lula — abrindo as portas do Planalto para os manifestantes e conversando amigavelmente com eles. Também não incluiu, curiosamente, os vídeos de manifestantes gritando em coro “Não quebra, não quebra!”, num evidente esforço de proteger o patrimônio público.
A situação piora: depois disso, o ministro utilizou o julgamento para atacar o que chama de “milícias digitais”, “nacionais ou estrangeiras”, que estariam, segundo ele, fazendo cortes do julgamento para produzir fake news. Mandou um recado: “Não vão intimidar o Poder Judiciário”. E confessou: liberou vídeos no processo para “evitar essas milícias digitais”. Repare, leitor: ele não liberou os vídeos para garantir o acesso das defesas ou para instruir o processo. Liberou para atingir um objetivo político externo ao processo — combater e impedir a ação de quem ele chama de “milícias digitais”. Desde quando é papel de juiz tomar decisões processuais apenas para rebater críticas ou atacar adversários políticos?
A resposta a essa pergunta é: desde que Dias Toffoli abriu o inquérito infernal das fake news e o entregou a Alexandre de Moraes, em 15 de março de 2019 — há seis anos. Desde então, as ilegalidades, os abusos e as atrocidades se sucedem, uma atrás da outra, sem trégua ou respiro, destruindo centenas de vidas e instaurando um ambiente cada vez mais marcado por censura e autoritarismo no Brasil. Como tais abusos são indefensáveis, Moraes agora aproveita os holofotes do julgamento de Bolsonaro para encobrir os fatos com sua narrativa, por meio de falas irrelevantes, inadequadas e inapropriadas, rebatendo críticos e atacando adversários. O julgamento mal começou e o show de Moraes já se tornou um show de horrores.