O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo julgado por tentativa de golpe de Estado. Tentativa de golpe de Estado, tentativa de golpe de Estado, tentativa de golpe de Estado. Quando mais você repete isso e tenta associar essas palavras às imagens daquele 8 de janeiro, às provas e ao que o próprio Bolsonaro dizia antes e depois das eleições (respeito às míticas quatro linhas, por exemplo), menos faz sentido. O STF deve estar tirando uma com a nossa cara. Só pode.
Tentativa de golpe de Estado. É ridículo. Tudo. Estou me lembrando agora de Bolsonaro, depois das eleições, vindo a público para pedir que as estradas fossem liberadas pelos insatisfeitos. Cena deprimente, sim. De aceitação da derrota, mas fazer o quê? Depois, ao perceber que não tinha jeito mesmo, ele viajou para os Estados Unidos, numa cena que pode ser qualquer coisa, inclusive humilhação e covardia, menos tentativa de golpe de Estado. Sinceramente, se isso é o que estão dizendo que é, então eu sou um ornitorrinco.
Contornos de absurdo
Depois teve aquela bagaceira do 8 de Janeiro. Aí vocês só podem estar de sacanagem comigo. A cabeleireira usou um batom para escrever na estátua e, assim, derrubar a democracia. O sujeito lá quis assumir o poder quebrando um relógio. Outro, defecando na mesa de Alexandre de Moraes. Sério, leia as frases anteriores em voz alta. De novo. Mais uma vez. Agora me diga se a narrativa não é, na melhor das hipóteses, grotesca. Uma insensatez que ganha contornos de absurdo quando você pensa que tinha até vendedor de algodão-doce no meio da tentativa de golpe de Estado. Como pode ter gente que acredita numa coisa dessas, meu Deus?
Numa coisa dessas. Nesse descabimento, nessa extravagância, nesse amontoado de incoerências e disse-me-disses. Nessa versão hipócrita, mentirosa e esteticamente cafona da história. E principalmente nessa fantasia de termos vivenciado um momento histórico de proporções épicas, a tal da tentativa de golpe de Estado. Uma tragédia da qual fomos salvos graças à brava resistência dos homens de toga, seus latinórios, suas canetas e seus relógios caríssimos, sem os quais a democracia, tadinha, estaria mortinha-mortinha. Mais do que já está. E como fede, o cadáver da dita-cuja. Ah, tenha dó!
Jamais terá
É tanta excentricidade ilógica que me ocorreu agora e vou dizer: muita ponte correu por baixo desta água. Teve a delação do Mauro Cid. Ou melhor, as delações. Cada qual contando uma versão ou acrescentando um detalhezinho ao gosto do freguês. No caso, o freguês é o ministro Alexandre de Moraes, esse ser determinado a perverter a verdade de modo que ela o retrate como o herói que ele não tem capacidade de ser. Nunca teve. Jamais terá. Teve ainda o cartão de vacinas, a importunação à baleia e outras coisas de que não me lembro nem quero. Tintas e mais tintas para pintar uma cena tão surreal que nem Salvador Dalí ousaria: a da tentativa de golpe de Estado.
Teve ainda a famosa minuta do golpe. E o Clezão. Sem falar no Filipe Martins. As pescas probatórias com seus baiacus inflados de factoides. Teve muita coisa que não cabe neste texto apressado. E teve aquele que, para mim, é o mais abjeto, desprezível, torpe e tosco dos argumentos: o de que havia um inegável desejo de cometer um golpe de Estado. Desejo esse que deve ser punido com o rigor da lei, para que jamais se repita. Que trash, né? Ainda mais vindo da alta corte, que deveria ser composta por homens sábios e honrados, mas que no momento, data vênia, mais parece uma pocilga.
Prestenção!
Insisto: é nojento e asqueroso, revoltante e triste. Mas é sobretudo ridículo. Lembra da história dos kids pretos e do sujeito que não levou o golpe a cabo porque não conseguiu um táxi ou coisa assim? Em que país democrático, verdadeiramente democrático, uma bazófia dessas seria levada a sério, ainda mais por um juiz fanfarrão e caricatural no seu ímpeto justiceiro? Ainda mais por uma imprensa ó tão letrada que tem até imortal. Tentativa de golpe de Estado. Sei... Faz-me rir.
É marmelada, é palhaçada, é teatro de quinta, é drama de rodoviária. É um delírio coletivo que, na intenção de nos curar da loucura, há de nos fazer pirar mais ainda. Porque, quando você consegue enxergar para além da mentira espalhafatosa e se dá conta de que Bolsonaro, os milicos, uns serviçais e o povo do 8 de Janeiro não estão sendo julgados pelo que de fato fizeram, e sim pelo que talvez tenham desejado, sonhado e imaginado, por mais antidemocrático que tenha sido o desejo, o sonho e a imaginação, você se dá conta do buraco em que estamos metidos. Tentativa de golpe de Estado? Ah, deixa disso, molecada! Tome tento! Prestenção!