O regime Magnitsky e o jurista na limiar entre direito e geopolítica

Por André Pinelli

    09/08/2025 16h57 - Atualizado há 4 horas

    A Lei Magnitsky, formalmente intitulada Russia and Moldova Jackson–Vanik Repeal and Sergei Magnitsky Rule of Law

    Accountability Act of 2012, teve sua gênese em um caso de corrupção e violações de direitos humanos que ganhou repercussão internacional com a tortura e morte do tributarista russo Sergei Magnitsky. Desde 2012, suas sanções foram progressivamente incorporadas a regimes legislativos nacionais como ferramentas de política externa. Além dos Estados Unidos, países como o Reino Unido (Sanctions and Anti-Money Laundering Act de 2018, base para as Global Human Rights Sanctions Regulations 2020), o Canadá (Justice for Victims of Corrupt Foreign Officials Act, de 2017) e a Austrália (Autonomous Sanctions Amendment Act, de 2021) instituíram regimes semelhantes. A União Europeia, diferentemente dos regimes americano, canadense e britânico, ainda não instituiu resposta similar a atos de corrupção. O EU Global Human Rights Sanctions Regime, de 2020, permite, contudo, a imposição de medidas restritivas contra autores de graves violações de direitos humanos.

    A utilização recente das sanções do regime fixado na Lei Magnitsky evidencia uma convergência entre interesses estratégicos e direito. Trata-se de um instrumento jurídico moldado segundo interesses de Estados que buscam garantir seus objetivos concomitantemente à garantia de certos valores. Tal convergência impõe ao jurista a obrigação de levar em conta a confluência de geopolítica e direito, convergência cuja compreensão se torna essencial para orientar clientes expostos aos efeitos dessa espécie de resposta estatal. Com efeito, ainda que direcionadas formalmente a indivíduos, as sanções Magnitsky têm o potencial de impactar setores inteiros: bancos, fornecedores e parceiros comerciais podem ser afetados colateralmente por manterem relações com o sancionado. A aplicação da lei a indivíduos em um país pode, portanto, reverberar sobre instituições públicas e privadas, expondo riscos concretos a uma multiplicidade de atores domésticos e internacionais.

    Contexto

    A gênese do regime de penalidades da Lei Magnitsky teve início em 2008, quando o tributarista russo Sergei Magnitsky, advogado da Hermitage Capital Management, denunciou um esquema de fraude fiscal de grande escala envolvendo autoridades do Ministério do Interior da Federação Russa. Em resposta às acusações, Magnitsky foi detido sob alegações de sonegação fiscal — precisamente o tipo de crime que havia denunciado. Durante quase um ano de prisão preventiva, foi transferido repetidamente entre diferentes centros de detenção, privado de cuidados médicos adequados, submetido a condições degradantes e, por fim, faleceu sob custódia, em novembro de 2009, em decorrência de maus-tratos físicos graves. Sua morte, amplamente documentada, gerou comoção pública e foi interpretada como um caso emblemático de retaliação estatal e impunidade sistêmica na Rússia. A resposta legislativa norte-americana — inicialmente circunscrita aos responsáveis por esse episódio — deu origem a um novo paradigma de sanção personalizada com base em direitos humanos.

    A Russia and Moldova Jackson–Vanik Repeal and Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act of 2012 teve escopo restrito: aplicava-se exclusivamente a indivíduos envolvidos na morte de Sergei Magnitsky ou em graves violações de direitos humanos cometidas na Federação Russa. Seu objetivo principal era sancionar diretamente os responsáveis pela morte do advogado, com medidas como o congelamento de bens sob jurisdição dos Estados Unidos e a proibição de entrada no país. O alcance das sanções foi ampliado em 2016, com o Global Magnitsky Human Rights Accountability Act. A lei autorizou sanções contra qualquer pessoa estrangeira, independentemente da nacionalidade ou local de atuação, envolvida em corrupção sistemática e violações graves de direitos humanos.

    A expansão decisiva do regime de sanções deu-se com a Executive Order 13818, em 20 de dezembro de 2017. Com fundamento na International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), a EO 13818 não apenas implementou o Global Magnitsky Act de 2016, como também ampliou substancialmente seu alcance. Passou a autorizar sanções não só aos indivíduos diretamente responsáveis pelos atos ilícitos, mas também àqueles que prestarem assistência material, patrocínio ou apoio financeiro, técnico ou logístico aos sancionados. A ordem executiva ainda prevê sanções a qualquer pessoa, física ou jurídica, que tente burlar, facilitar ou provocar a violação das medidas estabelecidas.

    A possibilidade de impor sanções secundárias a terceiros que mantenham relações de negócio com os sancionados transformou a Lei Magnitsky em um mecanismo de política externa. Nos termos de sua disciplina, o Poder Executivo norte-americano dispõe de discricionariedade para impor sanções individualizadas e, por isso, pode levar em conta, além de critérios propriamente éticos ou jurídicos, questões políticas e estratégicas.

    Direito, interesses nacionais e o cenário que se impõe aos advogados

    As sanções Magnitsky são, a um só tempo, instrumentos de responsabilização por violações graves de direitos e ferramentas de coerção diplomática. Tais sanções são seletivas, personalizadas e — ao menos formalmente — não se dirigem a Estados soberanos, mas a indivíduos e entidades. Com isso, evitam-se embargos generalizados, mitigando os efeitos sobre populações inteiras.

    Poder-se-ia, a partir de uma perspectiva de realpolitik, alegar que as referências a direitos humanos e ao combate à corrupção constituem apenas um discurso legitimador da projeção de poder. No entanto, apenas países capazes de projetar poder possuem condições de impor ou fazer uso desse discurso normativo — de modo sincero ou não. Por conseguinte, é a própria perspectiva de realpolitik que deve levar o jurista a considerar com seriedade os movimentos da política externa e as manifestações estatais.

    O discurso normativo, embora consistente, não pode ser dissociado de interesses estratégicos, e a garantia de tais interesses pode, legitimamente, ser concomitante à defesa de determinados valores. O regime de sanções revela, assim, um modelo no qual o direito e a política externa não apenas coexistem, mas se reforçam mutuamente. A seleção dos alvos, a natureza das condutas sancionáveis e o momento da imposição das medidas não são alheios à racionalidade geopolítica. De fato, os próprios critérios normativos — como a definição do que constitui uma “violação grave de direitos humanos” ou “corrupção significativa” — são amplos e flexíveis, conferindo margem de discricionariedade ao Executivo na sua aplicação.

    Isso se dá, deve-se notar, em um momento de redefinição das relações internacionais, em que a projeção de valores e princípios não pode ser dissociada da política externa. O direito, nesse contexto, torna-se um dos instrumentos pelos quais Estados buscam estruturar zonas de influência, sinalizar compromissos e afirmar posições perante a comunidade internacional. Importa notar, ainda, que as referências ao “direito” nesse contexto não dizem mais respeito à dogmática jurídica tradicional, ao direito positivo interno ou à jurisprudência dos tribunais superiores dos países atingidos por sanções como as previstas na Lei Magnitsky. Trata-se, antes, de um direito vivenciado no plano internacional, no qual a juridicidade não se impõe como instância autônoma, mas é forçada a coexistir — bem ou mal — com a lógica própria das relações entre os Estados.

    Diante desse quadro, impõe-se ao advogado uma mudança de perspectiva. Ele deve sair do universo restrito das sentenças, da dogmática nacional e das rotinas forenses para considerar um campo mais amplo — o da política internacional e da prática estatal global. Trata-se de um domínio para o qual, em regra, não foi preparado nem pela formação universitária nem pelo cotidiano profissional. Sem essa ampliação do horizonte, o advogado será incapaz de identificar e avaliar todos os riscos a que seus clientes — pessoas físicas ou jurídicas — poderão estar sujeitos em razão da atuação de órgãos estrangeiros.

    As penalidades

    O regime Magnitsky prevê um conjunto articulado de sanções que incidem de forma direta sobre indivíduos e entidades designados, ao mesmo tempo em que produzem efeitos indiretos de grande alcance.

    As penalidades diretas incluem, em primeiro lugar, o bloqueio integral de bens e ativos financeiros localizados nos Estados Unidos, ou sob posse ou controle de pessoas norte-americanas — inclusive bancos, corretoras e subsidiárias de empresas. Trata-se de uma sanção patrimonial com alcance extraterritorial, aplicável a qualquer bem ou interesse em bem que transite pelo sistema financeiro internacional com conexão à jurisdição americana. Esses ativos devem ser imediatamente congelados e reportados ao Office of Foreign Assets Control (OFAC).

    Em segundo lugar, o sancionado torna-se inelegível para vistos e impedido de ingressar no território dos Estados Unidos. Vistos previamente emitidos devem ser revogados, e qualquer tentativa de entrada no país será recusada. Também se estabelece a proibição de que pessoas sujeitas à jurisdição americana — inclusive cidadãos e empresas — realizem transações ou prestem serviços aos sancionados. Isso implica a cessação compulsória de contratos, pagamentos e quaisquer vínculos econômicos, sob pena de responsabilização do terceiro.

    Além disso, o regime prevê sanções a qualquer pessoa, física ou jurídica, que forneça apoio material, técnico, logístico ou financeiro a um indivíduo ou entidade sancionada. Essa disposição atinge patrocinadores, facilitadores e operadores indiretos, ampliando significativamente o círculo de responsabilização. Também são passíveis de sanção aqueles que tentem burlar ou provocar, direta ou indiretamente, a violação das medidas impostas. Violações administrativas podem ensejar multas civis de até 368.136 dólares por infração, ou o dobro do valor da transação envolvida — o que for maior. Em casos dolosos, a pena pode incluir multa de até um milhão de dólares e reclusão de até vinte anos.

    Os efeitos indiretos do regime não são menos relevantes, mas talvez os mais relevantes. Ainda que limitadas formalmente aos sancionados, as sanções produzem um efeito colateral de exclusão comercial e financeira. Indivíduos e entidades que mantenham relações de negócio com sancionados tornam-se alvos potenciais de sanções secundárias, especialmente se forem percebidos como facilitadores ou beneficiários da conduta ilícita. Em consequência, bancos, seguradoras, fornecedores, transportadoras e operadores logísticos podem encerrar vínculos com rapidez, mesmo sem imposição legal expressa, como medida de autoproteção regulatória.

    Esse efeito reverbera também sobre o acesso ao sistema financeiro internacional. Instituições que operam em múltiplas jurisdições tendem a excluir preventivamente de sua clientela qualquer nome incluído em listas de sanções, sob pena de bloqueio de operações em dólar, perda de acesso a sistemas de compensação, suspensão de licenças ou início de investigações por autoridades reguladoras.

    O efeito da sanção sobre a reputação também impõe custos expressivos. A inclusão de um nome em lista restritiva pode ensejar a suspensão de contratos, o cancelamento de parcerias comerciais e o encerramento de contas bancárias — mesmo em países que não adotam legislação similar. Muitas vezes, os efeitos jurídicos formais são secundários diante do isolamento reputacional e das perdas operacionais daí decorrentes.

    Finalmente, o regime impõe custos adicionais aos sancionados: qualquer bem bloqueado deve ser mantido e protegido, sendo o responsável legal por sua preservação impedido de utilizar recursos sob sanção para essa finalidade, salvo se obtiver uma licença específica emitida pela OFAC.

    Como é possível notar, o regime descrito compreende uma lógica sancionatória à qual os advogados não estão habituados — aqui não se está mais no campo das ideias arraigadas de responsabilização estatal e responsabilidade penal individual. Em contraste com esses modelos, o regime sancionatório Magnitsky adota uma abordagem administrativa, extrajudicial e seletiva, aplicando penalidades diretamente a indivíduos ou entidades com base em critérios amplos e discricionários, sem necessidade de condenação judicial.

    A força do regime está, precisamente, em ignorar os modelos clássicos, para produzir efeitos colaterais amplos — econômicos, reputacionais, regulatórios e operacionais — que se irradiam para muito além do círculo dos sancionados. O resultado é um sistema de responsabilização assimétrica, que impõe custos crescentes à manutenção de vínculos com alvos de sanção, gera incentivos à dissociação preventiva e obriga empresas, instituições e indivíduos a internalizar critérios geopolíticos em suas práticas de compliance e avaliação de riscos. A eventual proliferação de modelos similares ao longo dos próximos anos deve obrigar os advogados a repensar sua prática.

    Conclusão

    Não é possível, aqui, propor uma conclusão no sentido tradicional do termo. O momento de reconfiguração geopolítica impede qualquer encerramento “fechado” ou síntese definitiva. A tarefa do jurista, diante desse cenário, não é a de “concluir”, de tentar se agarrar a certezas, mas a de ter a disposição para identificar conexões e mapear riscos: trata-se de uma atitude de vigilância constante e da abertura corajosa ao ineditismo das circunstâncias.

    As próximas décadas não devem assistir a um retorno à estabilidade que marcou o intervalo entre 1991 — com o fim da União Soviética — e 2014, ano da anexação da Crimeia pela Rússia. Além do recrudescimento da violência — histórica — no Leste Europeu, desde 2010 a China passou a se apresentar como concorrente à posição hegemônica dos Estados Unidos e, desde então, observa-se uma crescente pressão internacional por alinhamento a uma potência ou aos seus rivais (Rússia e China), sem que a neutralidade se configure como uma opção viável.

    Cabe ao jurista compreender a lógica desse novo mundo e, sobretudo, preparar seus clientes para suas consequências — tanto no plano do compliance quanto no da gestão de riscos decorrentes de eventual exposição a sanções personalizadas. Em contextos marcados por sanções extraterritoriais, como as previstas na Lei Magnitsky, o compliance já não se limita ao cumprimento de normas internas ou setoriais, mas exige uma vigilância contínua sobre listas de sanções internacionais, práticas comerciais de contrapartes, fluxos financeiros e cadeias de fornecimento. A gestão de riscos, por sua vez, deve incorporar variáveis políticas, reconhecendo que decisões administrativas tomadas em centros de poder estrangeiros remotos podem afetar gravemente operações locais, reputações institucionais e até mesmo a autonomia de dirigentes e colaboradores.

    * André Pinelli é advogado empresarial no Brasil, pós-graduado em Direito de Empresa pela PUC-MG e com LLM na Duke University School of Law. Atualmente reside nos Estados Unidos, na Carolina do Norte, trabalhando como Legal Fellow na Pinelli Partners PLLC, escritório de advocacia especializado em Direito Societário e Direito Imigratório Americano para investidores e pessoas de habilidades extraordinárias


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